Palestine 36 é um filme ambicioso tanto em escala narrativa quanto em importância histórica. Lançado em 2025, escrito e dirigido por Annemarie Jacir, o longa revisita o ano de 1936 sob o Mandato Britânico na Palestina — momento central do levante árabe contra o domínio colonial, marcado por tensões raciais, políticas e sociais.
Jacir já tinha experiência com temas palestinos, identidade, resistência etc., em trabalhos anteriores como Salt of this Sea, When I Saw You e Wajib. Palestine 36 representa um salto: é seu filme mais grandioso, com elenco internacional, grandes ambições de reconstrução histórica e um claro propósito de memória e afirmação.
Enredo e Construção Narrativa
O filme segue vários personagens cujas vidas se entrelaçam num cenário de revolta, opressão, esperança e medo. No centro da narrativa está Yusuf, um jovem oriundo de um vilarejo, que se vê dividido entre as suas raízes rurais e a atração da vida urbana em Jerusalém, e entre a busca de uma vida “normal” e o peso da injustiça crescente.
Além dele, o filme constrói uma teia de personagens de diferentes classes sociais: camponeses, elites urbanas, trabalhadores, mulheres envolvidas na escrita política ou no cuidado da família. Esse entrelaçamento — a “fresca” de personagens, como dizem algumas críticas — permite que se mostrem distintos efeitos do colonialismo, da imigração judaica vinda da Europa, das políticas britânicas de controle, e das divisões internas também.
A narrativa evita simplificações no sentido de que não há “heróis puros” sem sombra de contradição; nem tampouco “vilões” completamente unilaterais (embora em alguns momentos o retrato do poder colonial se torne bastante forte). Essa nuance ajuda a dar mais credibilidade humana ao filme.
Temas Principais
Vários temas emergem de maneira potente:
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Colonialismo e Legado: Jacir explora como o domínio britânico moldou não apenas a geopolítica da região, mas também como as sementes dos problemas contemporâneos foram plantadas nesse período — dispossessão de terras, imigração, tensões étnicas e religiosas, políticas de “divide and rule”.
Memória e Resistência: O filme é um ato de memória — não de nostalgia —, como a diretora deixou claro. É também resistência: contra o esquecimento, contra versões oficializadas da História que omitem ou diluem o sofrimento e as escolhas forçadas.
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Classe, casta social, identidade interna: O filme não esquece que nem todos os palestinos viviam ou sentiam da mesma forma; há tensões entre vilarejos e cidades, entre elites urbanas e pobres, entre aqueles mais diretamente afetados pela violência física e aqueles que sofrem mais pelas arbitrariedades do estatuto social, econômico ou político.
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Individual vs. Coletivo: Yusuf e outros personagens enfrentam dilemas pessoais: o que sacrificar, como agir, até que ponto resistir — enquanto a história coletiva exige escolhas. Essas tensões pessoais são parte do que empurra o filme.
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Paralelos com o presente: Talvez uma das decisões mais fortes do filme seja mostrar a relevância de 1936 para os dias de hoje, evidenciando que muitas das dinâmicas coloniais — ocupação, desigualdade, deslocamento — continuam a reverberar. Jacir mesma disse que não via o filme como algo “do passado”, mas algo vivo, relevante.
Estética, Fotografia, Produção
Do ponto de vista técnico e estético, Palestine 36 entrega muito:
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Cenografia e figurino: A reconstrução dos vilarejos, da vida rural, das ruas de Jerusalém, dos interiores das casas, mostra cuidado extremo com os detalhes: objetos cotidianos, arquitetura, paisagem. Isso ajuda o espectador a mergulhar no tempo e no lugar.
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Uso de imagens de arquivo: Há inserções de material de época que reforçam a verossimilhança e a conexão com a História real, evitando que o filme pareça apenas uma dramatização distante. Essa mescla ficcional/histórica fortalece o impacto. T
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Elenco: Mistura de atores experientes com talentos novos. Todos parecem comprometidos. A atuação de Karim Daoud Anaya como Yusuf se destaca, assim como Saleh Bakri e Yasmine Al Massri em seus papéis de pessoas envolvidas pelo tumulto histórico. Jeremy Irons e outros atores britânicos são usados não só como símbolos do imperialismo, mas também como figuras com suas contradições.
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Ritmo: O filme é longo, exige paciência. Há momentos contemplativos, sequências mais reflexivas, outras mais tensionadas. Às vezes pode pesar para espectador menos acostumado com dramas históricos densos.
Pontos Fortes e Limitações
Pontos Fortes:
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A ambição histórica é rara: recontar 1936 com densidade, com atenção a vários atores sociais e sem concessões fáceis.
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A estética e o envolvimento emocional: o filme sabe como mexer com sentimentos, criar empatia sem cair em melodrama barato.
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Relevância política: o momento de surgimento do filme — com os conflitos contemporâneos — reforça sua urgência e seu papel de testemunho.
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Capacidade de abrir diálogos sobre memória, injustiça, colonialismo — vai além do entretenimento, é também educação e provo: trazer à tona o invisível ou pouco falado.
Limitações:
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Para quem não está familiarizado com a história de Palestina sob o Mandato Britânico, algumas passagens podem parecer densas ou exigir “pesquisa extra”. O filme investe muito em contexto, o que pode tornar o ritmo pesado.
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Alguns personagens ou momentos do poder colonial ficam um pouco caricatos — embora o filme evite o maniqueísmo, há cenas em que a oposição entre opressor e oprimido fica dramática demais, reforçando estereótipos.
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A abrangência narrativa (vários personagens, ambientes) pode diluir, em certos momentos, a intensidade emocional individual: quando o filme deve focar em Yusuf, por exemplo, há dispersões que talvez tornem difícil uma identificação mais profunda durante a totalidade.
Impacto e Significado
Palestine 36 já é reconhecido como o filme palestino submetido para o Oscar de Melhor Filme Internacional em sua edição. Isso mostra que, além do valor artístico, ele tem peso cultural e simbólico para a Palestina: é parte de um esforço de afirmar narrativas próprias, de contar a História não pela perspectiva colonial ou distante, mas de dentro, com as próprias vozes.
Além disso, num momento de crise, guerra e apagamento, fazer esse filme — com dificuldades de produção (evacuações, mudança de locações, interrupções) — já é por si um ato de resistência .
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